Para a professora de sociologia da Universidade de São
Paulo (USP) Liana de Paula, o sistema de garantia de direitos da criança
e do adolescente brasileiro ainda tem de avançar muito na área
preventiva. No Brasil, as ações socioeducativas, destinadas à
ressocialização do adolescente que cometeu ato infracional, têm mais
visibilidade que as preventivas. “A ideia da intervenção depois é muito
mais presente no planejamento e execução do que a política preventiva”,
disse.
Liana estudou durante dois anos o atendimento
socioeducativo a jovens em liberdade assistida – uma das medidas
socioeducativas destinada a menores que cometeram atos infracionais – e
constatou que falta integração entre políticas públicas e governos.
Em
sua tese de doutorado “Liberdade assistida: punição e cidadania na
cidade de São Paulo”, a pesquisadora aponta que os jovens também sofrem
com a responsabilização por seu futuro e em discussões que se preocupam
em aumentar punições, mas não se atêm à violação de direitos básicos
como saúde, educação, moradia e emprego. “Quando esses meninos chegam ao
sistema socioeducativo eles já estão numa situação de violação de
direitos deles...”, afirmou. “Muitos dos adolescentes que estão em
medida enfrentam em seu dia a dia desafios muito complexos, imensos, que
são questões sociais. Não individuais. E o tempo todo é demandado deles
que resolvam essas contradições de forma individual, não como grupo,
não na dimensão política, onde seria de fato possível resolvê-las, mas
ali no seu cotidiano."
Confira na íntegra a entrevista da socióloga para a Rede Brasil Atual:
RBA - A senhora identificou durante sua pesquisa que a recuperação dos menores infratores tem mais visibilidade que a prevenção.
Quando
esses meninos chegam ao sistema socioeducativo eles já estão numa
situação de violação de direitos deles: educação, moradia... direitos
fundamentais que já foram violados antes.
Quando eles
cometem atos infracionais e aí as políticas chegam até eles já tinham
sido vítimas de violações antes. O sistema de garantia de direitos das
crianças e adolescentes previsto no estatuto ainda tem de avançar muito
na área preventiva. A área socioeducativa – quando o adolescente já
cometeu ato infracional – tem mais visibilidade, tem apelo maior que a
preventiva. A ideia da intervenção depois é muito mais presente no
planejamento e execução do que a política preventiva.
Que desafios os jovens infratores têm de lidar no dia a dia?
O
que se percebe é um desafio grande na política de atendimento devido à
ideia de um individualismo heroico. Muitos dos adolescentes que estão em
medida enfrentam em seu dia a dia desafios muito complexos, imensos,
que são questões sociais. Não individuais. E o tempo todo é demandado
deles que resolvam essas contradições de forma individual, não como
grupo, não na dimensão política, onde seria de fato possível
resolvê-las, mas ali no seu cotidiano.
Ele tem de voltar
para a escola porque o juiz determinou, porque está no estatuto, só que
ele não se identifica com a escola e esta não se identifica com ele. E é
ele que vai viver isso no dia a dia, a angústia de estar em um lugar
onde ele não se sente pertencente, de um conhecimento que muitas vezes
não se torna possível para ele, processo que ele vai sofrendo de
exclusão, que o desestimula. E tudo isso é vivido por ele,
individualmente.
Quando para ser resolvido precisava ser
discutido de forma para além do caso individual. E todo um investimento
que é feito, em muitos momentos, dá essa impressão de que o adolescente
pode sozinho resolver problemas que são sociais. E ele é um adolescente.
A senhora acredita que se cobra demais de quem já sofreu várias violações?
Para
nós, é difícil perceber o quanto o dia a dia deles é complexo, tenso, e
muitas vezes envolve situações de risco à integridade física, à própria
vida deles. Apostar neles como aqueles que serão única e exclusivamente
capazes de resolver essa situação talvez seja uma aposta complicada. É
extremamente tenso pra ele, uma pessoa em desenvolvimento, que não é
adulto ainda, mas está em um momento de passagem de fechar a infância e
entrar na vida adulta.
O que é cobrado dele muitas vezes é
demais, por conta do que ele está vivendo. Muitos adolescentes sentem
essa pressão, essa angústia, têm contradições que surgem com a
violência. Muitos deles sofreram violência policial, então o dia a dia
deles é muito difícil. Muitos deles não têm acesso ao direito à moradia.
Têm dificuldade com acesso à escola, à saúde... Vários direitos
fundamentais da Constituição não são assegurados a eles. E na hora da
medida socioeducativa, cobra-se deles.
Eles vivem com
isso: não se sentem cidadãos plenos, com acesso pleno aos direitos
constitucionais. Se espera que o indivíduo seja um herói. Esse conceito
está presente na própria política, no sistema nacional de atendimento
socioeducativo. É um conceito chamado de protagonismo juvenil: como ser
protagonista de sua história em um contexto com tantas contradições?
A que direitos básicos os jovens infratores deixaram de ter acesso?
São
direitos fundamentais como direito à moradia, por exemplo. Alguns
adolescentes que entrevistei moram em cortiços com a família: ela
inteira num quartinho escuro, sem ventilação, em moradias precárias,
favelas, barracos. A escola não aparece como direito, mas como dever,
que o juiz determinou. Eles não veem a escola dessa forma. O que se pode
esperar de indivíduos que não veem a escola como direito, mas como
dever? Isso não deve ser discutido em casos individuais, mas enquanto
política. A saúde aparece como uma obrigatoriedade em fazer um
acompanhamento psicológico, porque eles fazem uso de uma droga, de
alguma substância. Isso não é percebido deles como uma demanda deles,
não parte deles mas é imposto a eles fazer terapia. Mais uma vez algo
que é um direito acaba se tornando uma obrigação. O desafio é: como é
possível pensar em cidadãos que vão ser resultados deste processo?
Que quadro a senhora encontrou ao dialogar com os jovens que fizeram parte do estudo?
Um
dos grandes desafios é o de integração das políticas. O que mais me
chamou a atenção é a dificuldade de reinserção da escola. Mas aí é um
desafio que não é exclusivamente do governo municipal. Acho que é maior,
que tem de ser discutido de forma mais ampla, com os governos federal e
estadual, porque é uma proposta que está no estatuto. A determinação de
que o adolescente volte para a escola muitas vezes vai na sentença
judicial. Se está afastado, que ele volte, e se não está, que ele
permaneça. Sete dos jovens pesquisados apresentavam um perfil de
defasagem escolar de mais de dois anos. Eles estavam muito atrasados. O
atendimento não conseguia, muitas vezes, superar essa dificuldade, que é
estrutural, de perceber o adolescente não como culpado de tudo que dá
errado na escola. É um desafio grande. Era uma das grandes questões no
atendimento, que mobilizava os orientadores, os adolescentes, os
coordenadores das ONGS, que faziam atendimento, conseguir vagas para os
adolescentes nas escolas. As escolas não têm interesse em recebê-los.
Elas os recebem com dificuldade, e eles acabam sendo constantemente
alvos de processo de exclusão da escola. Seja pela defasagem, porque
acabam sendo retidos, e ficando no mesmo ano várias vezes, e isso acaba
desestimulando a vida escolar deles, seja porque eles simplesmente não
conseguem ser matriculados, no momento da liberdade assistida. É o
desafio da escolarização.
Não há ainda uma proposta
pensada pra enfrentar esses problemas de exclusão da e na escola. O que
se faz é tentar cumprir a determinação do juiz de tentar matricular o
adolescente na escola, e isso gera vários conflitos. Não é só a escola
que não o quer, mas ele também não se sente pertencente àquele espaço,
que seria o grande espaço – ao meu ver – de abertura pra ele de
possibilidades fora da vida infracional. A escola é o espaço fortemente
indicado pra abrir outras possibilidades de projeto de vida e de futuro.
Qual
é o perfil dos jovens que estão nos programas de liberdade assistida? O
que determina se um adolescente vai ser atendido na Fundação Casa ou
por ONGs?
(Eles são atendidos) a partir de 14 anos. O
que determina não é só o tipo de delito. Os delitos considerados mais
graves requerem medidas socioeducativas mais severas. E também se o
adolescente reincide no mesmo ato infracional, ele pode ser encaminhado
pra uma medida mais severa, para além da liberdade assistida, que pode
ser tanto a semiliberdade quanto a internação. Em alguns casos, a
liberdade assistida é usada como progressão de regime. Embora não tenha
essa figura jurídica no estatuto, muitos juízes usam essa medida para
manter o acompanhamento de algum adolescente antes de eles estarem
totalmente livre.
Que tipo de delitos os adolescentes cometeram?
Nos
casos que acompanhei, furto, alguns casos de agressão, e alguns casos
de tráfico de drogas, principalmente venda livre, na boca.
Como foi o seu contato com esses jovens? Eles se dispuseram a falar?
Fiz
contato com 11 jovens, dois dos quais não se dispuseram a participar.
Em geral, o contato não é muito difícil. Eles estão muito acostumados.
Desde o início do procedimento, eles já estavam sentenciados. Quando
eles são apreendidos, tem todo um trabalho técnico do próprio poder
Judiciário, de levantamento de perfil e o adolescente faz entrevista.
Eles estão acostumados a conversar com técnicos.
Qual é a percepção deles sobre o que vai ocorrer a partir dali?
Olha,
depende muito do adolescente. Alguns entendem que a medida é algo
necessário, que faz parte, têm maior clareza de que se envolveram com um
ato infracional, cumprem uma medida que é o resultado desse caminho que
eles optaram seguir. Em dois casos, os adolescentes chegaram,
inclusive, a quebrar a medida. Não a cumpriram. Eles tinham dificuldade
grande de entender a medida na sua dimensão de uma punição, tanto que os
dois acabaram indo para semiliberdade. Eles não conseguiam entender a
proposta. Outros, que já tinham passado pela fundação, já tinham maior
clareza do que é cumprir a medida socioeducativa.
O que será desses jovens no futuro?
De
alguma forma, há alguma conformação. Não posso prever, mas existe uma
tendência em que algum momento eles acabem se conformando a esses
processos. Eles acabam entendendo como lidar com essas contradições que
estão impostas e a irem resolvendo pontualmente conforme elas forem
aparecendo. Alguns não se enquadram – não foi o caso de nenhum dos que
eu acompanhei – , mas alguns acabam tendo uma carreira no sistema
prisional, porque não conseguem resolver de sem o envolvimento com o
crime essas questões dos dia a dia. Agora, o fato de se conformar não
quer dizer necessariamente que isso seja bom. Muitas vezes se conformar é
não transformar, perpetuar essa situação de contradições, porque aí
novas gerações de jovens vão vir e ver essas contradições mais acirradas
ainda. Há mais um investimento para a conformação, do que uma proposta
de transformação da realidade que eles vivem.
Link da materia:
http://www.sinpsi.org/noticias.php?id=2085
Fonte: Rede Brasil Atual / Suzana Vier
Obs:. As opiniões expressas nesta materia tem carater informativo e não necessariamente expressam a opinião do Blog Medida Legal.